O passeio público
- a partir do texto "Passeio Socrático", de Frei Betto
Alexandre Martins
Até hoje não viajei pelo Oriente. Não fui patrocinado por nenhuma ONG ou partido político. Já vi monge budista em minha própria cidade natal, São Gonçalo. Era professor de kung fu e se ressentia por ser um professor de artes marciais orientais que não era oriental. Os que o viam não acreditavam na qualidade de suas aulas justamente por não ter olhos puxados, por mais que se vestisse de açafrão e por mais que fosse mestre nos variados estilos marciais.
Não preciso ir em nenhum aeroporto para ver a neurastenia dos executivos. Basta cruzar a ensolarada Baía da Guanabara nas barcas pelas manhãs e vê-los trajando roupas caras e modernas, com mochilas mais caras ainda e celulares milionários. Aliás, nunca entendi esta mania estadunidense de trajar um costume bem cortado com uma mochila de grife. Essas visões me incomodam: é preciso isso para ser um profissional de sucesso? Um grande consultor de empresas disse certa vez que "costumes são para os empregados; os donos de empresa usam mocassins". Acredito nele.
Vejo os jovens do meu bairro meditando em frente a um monitor de computador. Não estão pesquisando na Rede para a aula do dia seguinte. Nem ao menos conversando com um amigo do Japão. Estão procurando passar a fase de God of War ou escalar a Seleção Brasileira Virtual. Quando era criança, os garotos saíam correndo da aula pra jogar bola num terreno baldio e as garotas jogavam queimado na rua asfaltada (dava pra riscar com giz). Vejo os jovens de hoje com a mesma preocupação que os adultos de ontem viam os jovens de hoje. Antes diziam: "esses garotos não largam a televisão". Hoje não se diz nada, mas não se percebe que os garotos são como que dopados, como bêbados andando pelas ruas e nem desviam das pessoas nas calçadas? Escalar uma seleção virtual não dá a mesma experiência de escalar um time entre vizinhos do bairro. Como vou conviver com outros no meu trabalho futuro se apenas vi personagens animados?
Vi uma curiosa idéia de como ser asseado numa igreja: a "vela virtual". Bastam algumas moedas e liga-se um botão para acender uma lâmpada de diodo tremulante. O efeito é o de uma vela laranja. Acabou-se o "cheiro de igreja" - um misto de madeira encerada, incenso e cera de velas queimadas... Fica muito asséptico. Não desperta nada de psicossomático. Parece como olhar para os azulejos brancos de um banheiro de clube, ao invés do muro de uma casa antiga, com seus sinais do tempo, infiltrações, mofos, musgos, demonstrando em cada um deles anos ou décadas. Sou virtual no contato com as pessoas e também o sou com meu Deus?
Não sei quantos ainda ficam plantados em frente à televisão num Domingo à tarde. Antigamente os habitantes de Fortaleza saíam da praia às quinze horas somente para prestigiar um apresentador domingueiro. Todos os mais pobres hoje tem televisão aberta. Os mais ricos hoje tem televisão a cabo. E os pobres sem escrúpulos roubam o sinal de televisão dos ricos. Ambos, ricos e pobres, compram produtos chineses. Apenas os ricos os compram sem saber nos shoppings e os pobres compram conscientemente no comércio ambulante ou "informal" no jargão politicamente correto. Não interessa o "bom produto", mas apenas o "ter o produto".
Nunca vi ninguém ir a um shopping com "roupa de Domingo" - será que hoje em dia se sabe o que é isso? - pois mesmo nas igrejas em locais de veraneio os fiéis são incentivados a irem de bermuda florida e chinelo à Missa.
Não basta ter amizade e não ter estresse para ter uma boa saúde mental. Estudos recentes descobriram algo que todas as culturas sabiam e que somente nestas últimas décadas a sociedade achou supérfluo: a religião. Ter uma religião e praticá-la "religiosamente" é saudável para o ser humano. Mais do que apenas "meditar", mais do que apenas cultivar autoestima...
Mas há "pessoas diferentes" em certos shoppings: são os garotos que vestem uma bermuda diferente para passarem desapercebidos e vão na primeira loja de grife comprar um tênis que será pago em dezenas de prestações. Mas mesmo assim são vigiados por seguranças como se fossem "big-brothers". Aliás, todos os shoppings são monitorados exaustivamente por câmeras, assim como em muitas áreas das cidades modernas.
Desde que surgiu a Revolução Industrial e o Pensamento Marxista houve alguém discursando contra o consumismo e o mercado. Parecem aqueles barbudos como o Profeta Gentileza pregando no meio dos engarrafamentos. Se não fosse o desejo de comer pimenta, a Europa não teria conhecido outros países, e não teria comido macarrão. O Mercado pode ser útil, como tudo no mundo, desde que não sejamos escravizados por ele, como tudo no mundo pode nos escravizar.
Não perderia meu tempo explicando ao jovem comerciário que estou fazendo apenas um passeio público. Apenas falar com ele e não deixá-lo vender alguma coisa para mim fará nele algo terrível: perderá a sua vez na porta, irá para o fim da fila dos vendedores daquela loja e não cumprirá sua meta de vendas para o dia, o que talvez contará mais para sua demissão.
Ainda mais, ele não quer saber de nada de mim. Apenas é uma peça na engrenagem de venda desta criação estadunidense. É apenas mais um tijolo no muro.
Prefiro fazer um passeio público. É o nome do primeiro parque da cidade do Rio de Janeiro, ainda no século XIX e ainda existente. Nada mais do que caminhar sob frondosas árvores, com amigos ou com a pessoa amada. Se havia este passeio nos tempos antigos, hoje se faz o mesmo passeio, não sob árvores, mas em um ar refrigerado. Ainda com amigos, não entre grades de ferro, mas entre paredes grossas. Não comprando, mas apenas vendo coisas bonitas criadas pelo Homem, que é uma bonita coisa criada por Deus.
Rezemos antes do sanduíche, demos graças a Deus pelo suco de pitanga...
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