No presépio com Maria e José...
A piedade e a curiosidade andam juntas quando se medita às vésperas do Natal, quando nos dispomos a pensar no que seria a singular aventura de uma criatura ser a mãe de seu Criador. Jamais em alguma religião pensada pelos homens pode algo servir deste inefável mistério.
Mas não seremos nós os primeiros, pois outros mais pensaram antes e nos deixaram o fruto de suas meditações e algumas delas nos dão certeza que não foram apenas fruto de uma mente racional mas também uma iluminação divina em seus corações.
A tradição nos deixou uma “Oração ao Verbo Encarnado”, composta pelo Padre da Igreja João Crisóstomo:
Ó Filho Único e Verbo de Deus,
sendo imortal, vós vos dignastes, visando à nossa salvação, encarnar-vos na Santa Mãe de Deus e sempre Virgem Maria,
vós que, sem qualquer transformação, vos tornastes homem e fostes crucificado,
ó Cristo Deus, por vossa morte esmagastes a morte
Vós que sois Um na Santíssima Trindade, glorificado com o Pai e o Espírito Santo, salvai-nos!"1
O grande Bernardo, abade do mosteiro de Claraval, grande também em sua devoção à Mãe de Deus, nos mostra a relação da profecia vetero-testamentária com a vida de Maria:
"O anjo de Iavweh lhe apareceu numa chama de fogo, do meio da sarça. Moisés olhou, e eis que a sarça ardia no fogo e não se consumia" (Ex3,2). Que presságio seria este, testemunhado por Moisés - a sarça a lançar chamas -, senão Maria, que conceberia, sem dor?
"... Moisés entrou na tenda do testemunho, e eis que a vara de Arão, pela casa de Levi, estava a florescer; porque produzira flores, brotara renovos e dera amêndoas." - "A vara de Aarão que florescia sem ter sido regada" (Nm 17, 8) não representa a figura da Virgem concebendo sem ter conhecido homem? Deste grande milagre, Isaías desvenda o mistério maior ainda: "Um ramo sairá do tronco de Jessé, um rebento brotará de suas raízes" (Is11,1). O ramo, em seu pensamento, é a Virgem, e a flor, o rebento, o Filho da Virgem.
E este célebre tosão que, tirado da ovelha pela tosquia, sem machucar-lhe a pele, é depositado na eira, e cuja lã ora impregnada de orvalho, ora mantida seca, sobre o solo desfeito, o que significa, senão a carne de Cristo tomada da carne de Maria, sem danificar a sua virgindade? Nela, infalivelmente, com o orvalho dos céus, irrompeu a plenitude da divindade, a ponto de fazer com que sejamos, todos nós, partícipes desta plenitude e que sem ela, somos apenas uma pobre terra árida.2
O mesmo abade relaciona a vida da Virgem com mais profecias do Antigo Testamento:
Ouçamos o que diz Jeremias, acrescentando novas profecias às antigas, ele assinala a vinda daquele que ainda não poderia anunciar, mas sugeria, movido por um ardente e vivo desejo, e prometendo-o com segurança, e absoluta certeza.
Até quando irás de cá para lá, filha rebelde? Porque Iaweh cria algo de novo sobre a Terra: a Mulher rodeia seu Marido (Jr 31, 22). Quem é esta mulher? Quem é este homem? E se, de fato, trata-se de um homem, como poderia uma mulher envolvê-lo, rodeá-lo, protegê-lo? E se uma mulher pode envolvê-lo, de que forma entenderíamos tratar-se de um homem? Falando mais claro, de forma inequívoca, como pode este homem ser ao mesmo tempo um homem feito e ainda estar ligado ao seio materno? (pois aí está o sentido da expressão "uma mulher envolverá um homem").
Homens, para nós, são aqueles que ultrapassaram a tenra idade, a infância, a adolescência, a idade madura e chegaram à idade próxima à velhice; ora, aquele que já passou por estas etapas pode continuar a ser acalentado, envolvido por uma mulher? Se o profeta dissesse: "Uma mulher envolverá e protegerá uma criança, um bebezinho", não veríamos nenhuma novidade, nenhum prodígio no citado. Porém, ele não se referiu a um bebezinho e sim a um homem; então, nós nos perguntamos: que novidade seria essa que Deus realizou para esta Terra, que uma mulher pudesse envolver um homem e que um homem pudesse estar recolhido no interior de um frágil corpo feminino? Que milagre é este? Um homem pode, como inquiria Nicodemos, retornar ao ventre materno? "Como pode um homem nascer, sendo já velho? Poderá entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e nascer?" (Jo 3, 4)
Há os que ensinam que as dores do parto mostravam a Maria que ela estava perto de conceber. Mas não encontramos nada sobre isso na Escritura. Ao invés, sabemos que as dores do parto são o sinal da Culpa Original nas mulheres (Ex 3,16). Ora, sendo a Virgem não somente virgem mas Imaculada, nada de Pecado existia nela e, portanto, as dores do parto seriam também inexistentes. Quanto a este pensamento são Francisco de Sales nos esclarece:
Vocês conhecem, sem dúvida, a revelação que Santa Brígida recebeu e que ilustravam o nascimento do divino Salvador (Révélations, livro VII, c.21). A Santa diz que Nossa Senhora, estando numa grande abstração, viu, de repente, o Menino Jesus deitado no chão, nu, e que o tomou em seus braços, envolvendo-o em panos e faixas.3
Tal atitude, totalmente sobrenatural, somente poderia ocorrer em uma pessoa singular, desprovida da Mancha de nossos pais. Um poema de autor desconhecido nos ilustra este momento:
Hoje, a Virgem traz ao mundo o Eterno
e a terra oferece uma gruta ao Inacessível.
Anjos e pastores o louvam
e os magos avançam, com a estrela que os guia,
pois Tu nasceste para nós,
Pequena Criança, eterno Deus!
O que faziam no presépio a Santíssima Virgem e São José? Qual sua ocupação naquele santo momento e mesmo após ele? O cinema nunca se preocupou em nos mostrar este momento tão singelo, tão sublime. Mas o Patrono dos Sacerdotes, são João Maria Batista Vianney já meditava sobre isso e nos instrui:
Qual era a atitude da Santíssima Virgem e de São José, no presépio? Eles olhavam, contemplavam, admiravam o Menino Jesus. Esta era a sua ocupação. Estavam eles, em oração, diante do Santo Sacramento, exposto no altar do presépio. Bendiziam e agradeciam o bom Deus que, por amor a todos nós, acabava de nos oferecer seu próprio Filho. Jamais alguém poderá compreender, nem dizer tudo o que se passava, então, no coração de Maria.
E que delicada preocupação de um outro Padre da Igreja, são Basílio de Selêucia, ao pensar na postura de Maria perante o seu filho, que também era o seu Deus.
Como deverei chamar-vos? Dizia-lhe Maria.
Homem? Mas vossa concepção é divina...
Deus? Mas vós estais revestido com a nossa carne...
O que deverei fazer por vós?
Nutrir-vos com o meu materno leite, ou glorificar-vos?
Envolver-vos de cuidados como o faria qualquer mãe ou adorar-vos como uma serva?
Beijar-vos como Filho meu ou rezar a vós, como sois, o Senhor e meu Deus?
Devo dar-vos o leite materno ou incenso?
Que mistério indizível!
O céu vos serve de trono e vós repousais em meus braços!
Vós pertenceis inteiramente aos habitantes da Terra e não privastes o céu da vossa presença.
O Cardeal Journet se mostra conhecedor de uma realidade como se houvesse estado naquele momento há milênios:
Sinto-me absolutamente persuadido de que, quando os pastores chegaram ao presépio, não se aproximaram logo do Menino Jesus. Em primeiro lugar, eles teriam olhado para a Virgem Maria, teriam observado seus olhos, e a Virgem lhes teria mostrado, então, o seu Filho. Foi só então que eles teriam avistado Jesus com os seus olhos.
Tentai contemplar os mistérios do Evangelho com os olhos da Virgem. Vós pensais na morte de Jesus Cristo na Cruz; acreditais que este sacrifício já se tenha esgotado, mergulhando no mais profundo de sua dor e de seu mistério. Em seguida, dizeis: com que olhar a Virgem contemplou seu Filho, pregado na Cruz? Deveis rezar, então, a ela, desta forma: "Fazei que eu compreenda um pouco, assim como vós compreendeis."
A Virgem não está mais diante de vós, como a realização da santidade que venerais; ela vos toma sob o seu manto e vos envolve, para vos ajudar a contemplar todos os mistérios com o seu olhar.4
Romano, o “melode”, famoso por suas pregações, em especial sobre a Bem-aventurada Virgem, também se equipara a Basílio de Selêucia em se colocar no lugar maternal de Maria:
Maria se aproximava, levando-o nos braços:
Ela se questionava, de que forma, sendo mãe, mantinha-se virgem,
Sabedora daquele parto que transcendia a natureza,
assustada, tremia,
e, dentro do seu coração, dizia a si mesma:
Que nome deverei te dar, meu Filho!
Homem? Mas tu estás acima dos homens,
Tu que conservas a minha virgindade.
Eu deveria chamar-te homem perfeito? Mas sei que é divina a tua concepção.
Se te chamo de Deus, fico assustada,
vendo-te, em tudo, semelhante a mim.
Tens tudo o que qualquer homem tem.
Devo amamentar-te ou cantar-te um hino?
Depois de tantas citações, concluamos com uma criação moderna, mas cheia de amor e delicadeza com a Mãe de Deus, imaginando o que teria pensado quando colocou pela primeira vez o Verbo Encarnado para dormir em seus braços:
Meu Deus, que estás a dormir, frágil entre os meus braços,
minha criança, quentinha e aconchegada ao meu coração que pulsa, que bate forte...
Eu adoro, em minhas mãos, e embalo, admirada,
ó Deus, a Maravilha, que me destes.
Filho, ó meu Deus, eu não tinha (...)
Mas vós, Todo-poderoso, um Filho me destes.
Lábios, ó meu Deus, Vós não tínheis, lábios
para falar aos que, aqui embaixo, perdidos estavam. (...)
Ó meu Filho, fui eu quem te deu estes lábios.
Vós não tínheis mãos, ó meu Deus,
para curar, com o toque de vossos dedos, seus pobres corpos fatigados. (...)
Ó meu Filho, fui eu a dar-te estas mãos.
A humana Carne, ó meu Deus, vós não a tínheis,
para com eles partir o pão da refeição. (...)
Ó meu Filho, fui eu quem te deu esta humana carne.5
* * *
(*) - palestra proferida na reunião da Congregação Mariana Sede da Sabedoria em 18 de dezembro de 2010.
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1- Liturgicon - Missal Bizantino; Tropário O Monoghenis - Canto composto por São João Crisóstomo para a liturgia bizantina.
2- Trecho da segunda Homilia Super missus
3- Sermão para as vésperas da Epifania, 5 de janeiro de 1618.
4- Cardeal Charles Journet, in “Entretiens sur Marie” (Entrevistas sobre Maria), Ed. Parole et Silence, 2001
5- Poema de Marie Nöel, trecho de Patapon, revista católica mensal para crianças entre cinco e onze anos, Edições Téqui
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