A Roda do Moinho



[diz o Senhor]
O afeto do coração deve estar em Mim,
não nas coisas externas;
elas não pertencem aos homens,
são dadas em empréstimo.”
s. Catarina de Sena1




Na peregrinação em 2010 ao Santuário mariano de Fátima, Portugal, d. Peter, Cardeal Turkson, alertou que preocupações podem afetar a Fé. Afirmou algo talvez óbvio, mas com certeza preocupante.
O então presidente do Conselho Pontifício Justiça e Paz advertiu quanto ao perigo das preocupações cotidianas tornarem-se obstáculos à fé. Ele pediu que as decisões humanas, especialmente dos católicos, levem sempre em conta Deus. Mas será que todos são assim?
Robert Schuman2, homem de notável fé e variadas preocupações, nunca começava nada, seja uma palestra, trabalho ou mesmo o seu dia, sem que contasse algumas Ave-Marias nas contas de seu rosário3. É um exemplo de como se coloca a Deus em primeiro plano.
Gabriel Garcia Moreno, congregado mariano, presidente do Equador, pôde ser um político verdadeiramente católico porque era um homem católico em verdade4. Trabalhava muitas horas cada dia, sujeitando sempre seu horário a uma distribuição muito estrita, que incluía levantar-se às cinco horas da manhã, ter Missa, meditação e exame de consciência entre as seis e as sete.
Em uma das páginas da “Imitação de Cristo”, Gabriel Garcia anotou, por ocasião dos seus Exercícios Espirituais: “Oração a cada manhã, e pedir particularmente a humildade. Nas dúvidas e tentações, pensar como pensarei na hora da morte. Que pensarei sobre isto em minha agonia? Fazer atos de humildade, como beijar o solo em segredo. Não falar de mim. Alegrar-me de quem censurem meus atos e minha pessoa. Conter-me vendo a Deus e a Virgem, e fazer o contrário do que me incline. Todas as manhãs, escrever o que devo fazer antes de ocupar-me. Trabalho útil e perseverante, e distribuir o tempo. Observar escrupulosamente as leis. Tudo ad majorem Dei gloriam [à maior glória de Deus] exclusivamente. Exame (de consciência) antes de comer e dormir. Confissão semanal ao menos.”
Professamos a nossa Fé em “amar a Deus sobre todas as coisas”. Mas, que coisas são essas? Sem dúvida amamos mais a Deus do que tudo, mas será isto verdade no nosso dia a dia?
Quantos não se furtam de ir a praia ao invés da Santa Missa dominical pois alegam que “trabalham tanto e somente tem este dia para estar com os filhos”. Alegam que não estão preferindo a família do que a Deus, pois o Senhor ensinou que devemos amar nossos filhos e conjugues.
Há os que preferem a ascensão profissional, deixando em segundo ou terceiro plano as orações diárias ou uma leitura espiritual. Alegam que não querem ser carolas, mas ao invés, católicos conscientes de suas responsabilidades profissionais. Outros alegam que “tem contas a pagar” e que não podem viver como se fossem aposentados e ficar rezando o dia todo.
Diz um bispo africano no século V: “o que preferes? A santidade ou o dinheiro? Dirás: 'mas não tenho como que viver, não tenho o suficiente para comer, para beber'. E se não puderes conseguir isso a não ser pela iniquidade? Tu vês o lucro do ouro que ganhas, mas não vês a Fé que perdes”5
Destes e de vários outros exemplos podemos concluir que existem muitos cristãos que pecam contra o Primeiro Mandamento. E, pior, não se acusam numa Confissão...
Por que agem assim? Acreditamos que não seja por falta de amor a Deus, mas sim de possuírem um amor infantil, algo primário, reticente. São pessoas que creem em Deus, mas com alguma reserva, uma religião de fim de semana. A própria roupa diz isto claramente em alguns casos, quando aqueles que se vestem adequadamente para o trabalho, roupas especialmente escolhidas até, usam de camisas esportivas e calças cansadas para ir numa reunião pastoral ou mesmo a Santa Missa, como se estivessem indo fazer compras na quitanda da esquina...
Se parassem para pensar nos atos de sua vida, muitos veriam que não amam a Deus sobre todas as coisas. Amam a si mesmos. São como um moinho que gira interminavelmente para prover a fazenda de energia. Enquanto tiver água no rio, a roda do moinho girará. Como as poderosas turbinas da usina de Itaipu: as águas do rio não acabarão nos próximos milênios e elas estão lá, girando ferozmente, parando somente quando o seu metal se romper e acabar sua vida útil. Daí uma nova turbina será colocada e começará sua sina interminável, girando sem fim.
Pode-se dizer que a roda do moinho é útil para alguém. Sem duvida. Mas não o é para ela mesma. Deus nos criou para sermos mais do que apenas geradores de atividades, de “motos contínuos” sem descanso. Deus nos criou para participarmos da sua criação como co-criadores e aproveitarmos do Mundo. E não só co-criadores, mas correndentores: “Suportando o que há de penoso no trabalho em união com Cristo crucificado por nós, o Homem colabora, de algum modo, com o Filho de Deus na Redenção da Humanidade.”6
Há uma doença psicológica do ativismo que foi diagnosticada em meados do século XX. Os que possuem este desequilíbrio chamam-se de workaholics. Workaholic é um termo originado da palavra inglesa alcoholic, que significa “alcoólatra”. Significa, então, uma pessoa que é “viciada em trabalho”.
O workaholic já começa a ser visto pelos especialistas em Recursos Humanos como um profissional pouco produtivo, já que não sabe se organizar nas oito horas diárias e costuma levar trabalho para casa. Por conta disso, cresce o número de empresas que criam programas para encorajar os empregados a buscar o equilíbrio na sua vida privada e na profissional . A justificativa é que quem trabalha muito tem longevidade menor, em função dos males provocados pelo estresse.7 Os funcionários mais ambiciosos e competitivos, que a psicologia dos anos 1950 definiu como pessoas com uma personalidade do tipo A, são mais vulneráveis às doenças do coração. Num artigo do diário britânico The Telegraph, enumera-se que os trabalhadores compulsivos estão mais sujeitos a desenvolver bruxismo, o hábito de ranger os dentes durante a noite. Os problemas de fertilidade nas mulheres também tendem a aumentar, acreditam os especialistas. “Têm níveis muito elevados de cortisol, o que os faz sentir mais ansiosos e empanturrarem-se com café, fast-food* e chocolate – todas estas coisas mantém-te com energia mas também te fazem ir abaixo e ansiar por mais”, resume a formadora de executivos Lisa Wynn. Uma solução: saber parar, mesmo numa carreira absorvente.8
Centros de terapia foram criados para curar os afetados e no fim de tudo as pessoas curadas chegam a uma conclusão bem simples: a vida é para ser vivida em plenitude.“o trabalho é 'para o Homem' e não o Homem para o trabalho”9


Segundo d. Peter, “a ilusão e as preocupações da vida podem tornar-se verdadeiros obstáculos à nossa fé em Deus e podem maliciosamente comprometer a nossa relação com Deus, a nossa vida religiosa e a nossa vida de fé”. Quem imaginou isso? Achar que somente nós podemos agir a nossa vida e a Mão de Deus nada pode nos proporcionar? Nunca, dirão alguns, pois nós pedimos sempre a Deus com muita fé. Há automóveis que tem adesivos com a frase “foi Deus que me deu”. Deus, segundo eles, somente dará coisas boas, como aquele modelo com ar condicionado e direção hidráulica... e somente aquilo que for pedido.
Deus se torna, assim, um acionista da nossa vida, um colaborador da “grande” tarefa de sermos pessoas bem sucedidas. Não entendemos a mão de Deus nas coisas pequenas, mas somente nas grandes obras. Não entendemos a vontade de Deus em uma enfermidade, mas apenas na promoção do salário.
Não foi assim que os santos pensaram. E não é assim que devemos pensar.
As ocupações “podem maliciosamente comprometer a nossa relação com Deus”. Veja uma palavra perigosa que o Cardeal Turkson usa: malícia. A malícia é um pensamento lascivo, sub-reptício. Usa-se de malícia quando preferimos estudar a rezar, alegando que queremos agradar a Deus, mas na verdade queremos as glórias de uma boa empreitada.
D. Peter alertou que esta é uma situação que afeta não só os responsáveis eclesiais e as comunidades cristãs, mas também “governos nacionais e organizações mundiais”. Um exemplo é o clássico caso do aumento populacional da Terra. Várias personalidades, mesmo o famoso Jacques Custeau10, defendem o controle de natalidade “para que o planeta viva mais” e com melhor qualidade de vida. Filmes foram feitos prevendo catástrofes climáticas por causa de um alardeado super aquecimento global. Tudo levando maliciosamente – de novo a palavra – a pensarmos que somente nós iremos salvar o Mundo. Somente o conjunto de esforços da nações – que no cinema fica nas mãos apenas dos Estados Unidos – irá salvar a Humanidade de uma nova Idade da Pedra.
Na realidade, vários meteoros do tamanho da cidade de São Paulo passaram bem perto (em termos astronômicos) de nosso planeta sem nos atingir. E isto mesmo nesta década. Sorte ou “mão de Deus”? Não é mais palpável crer que há um Criador que protege a sua Criatura do que construirmos um gigantesco canhão de raios para pulverizar um possível asteroide?
Citando estes fatos científicos chegamos a conclusão que a Ciência deve se preocupar em melhorar a vida das pessoas aqui na Terra e não ficar monitorando o Cosmo em busca de possíveis “meteoros do Fim do Mundo”, não é? Mas é isso mesmo que ocorre com aqueles que acham que somente com seu esforço irão progredir na vida. O chamado “self-made man” é apenas uma criação do cinema de Frank Kapra. Ninguém faz nada de bom sozinho...“o trabalho tem como sua característica, antes de mais nada, unir os homens entre si; e nisto consiste a sua força social: a força para construir uma comunidade.”11 Será que é isso que nos ensina subliminarmente os filmes de cinema e televisão?
O cardeal Turkson deixou para os católicos um desafio. O desafio, a missão, de confiar num Deus que “pode ser oculto”, mas que “nunca abandona a obra das suas mãos”. 
Aprendamos com os monges, famosos pelo dia de trabalho e oração, como Thomas Merton: 
“O verdadeiro contemplativo é aquele que descobriu a arte de encontrar o lazer em plena atividade, pois trabalha com o espírito tão desapegado e recolhido que o próprio trabalho é para ele oração. A oração torna fácil o trabalho, este ajuda a voltar a oração com o espírito refrescado.”12



Alexandre Martins, cm.

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1- s. Catarina de Sena, in “O Diálogo”, 2ª edição, Ed. Paulinas, SP, 1984, pág. 10
2- Robert Schuman (29/06/1886 - 4/09/1963),  político democrata cristão e estadista luxemburguês radicado na França. Advogado de alto nível e Ministro dos Negócios Estrangeiros francês entre 1948 e 1952, é considerado um dos promotores da unificação europeia, sendo chamado de “O Pai da Europa”. Foi iniciado o seu processo de canonização.
3 - Testemunho de René Lejeune , Documento fornecido pelo Postulante da Causa, Padre Joseph Jost.. Disponível em www.robert-schuman.com/fr/pg-temoignages/spi-mar.htm
4- presidente da República equatoriana por dois mandatos, 1861-1865 e 1869-1875. Adotou a Doutrina Social da Igreja em seu plano de governo. Fez a consagração do Equador ao Sagrado Coração de Jesus, sendo a primeira nação do mundo a fazê-lo.
5- s. Agostinho de Hipona, in “Comentário à Epístola de João”
6 - papa João Paulo II, in “Carta Encíclica Laborem exercens” (sobre o Trabalho Humano no 90° aniversário da Rerum Novarum), 14/09/1981, 4ªedição, Ed. Paulinas, SP, 1981, pág 94
7- Jornal Administrador Profissional - nº 234 - Dezembro 2005
*- do inglês “comida rápida”, refere-se a comida em lanchonetes: sanduíches, salgadinhos, etc.
8- Disponível em http://www.ionline.pt/conteudo/52370-workaholics-sorte-ao-trabalho-azar-na-saude
9 - papa João Paulo II, in “Carta Encíclica Laborem exercens” (sobre o Trabalho Humano no 90° aniversário da Rerum Novarum), 14/09/1981, pág 24
10- Militar, oceanógrafo e explorador francês (11/6/1910-25/6/1997).
11- papa João Paulo II, in “Carta Encíclica Laborem exercens” (sobre o Trabalho Humano no 90° aniversário da Rerum Novarum), 14/09/1981, pág 73
12- Thomas Merton, in “Direção Espiritual e Meditação”, pág. 102-103


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