As Congregações Marianas para indígenas nas Reduções Jesuítas
Alexandre
Martins, cm.
As Reduções – povoados indígenas,
em especial entre a nação Guarani - fundados na Província do
Paraguai a partir de 1609, fizeram parte de uma estratégia de
ocupação do território latino-americano pela Coroa espanhola.
Foram um instrumento de controle de certos territórios de
fronteira, especialmente em regiões onde os poderes coloniais não
tinham “mediações para exercer a hegemonia sobre a população
indígena”.1
As Ordens Religiosas de então, especialmente a Companhia de Jesus,
foram literalmente usadas pela Coroa para seu trabalho de colonização
e inserção daqueles povos ao Império Espanhol.
Embora algumas Reduções tivessem sido
assentadas em locais próximos aos meios urbanos hispânicos, em
geral floresceram em regiões afastadas, atendendo a considerações
práticas do trabalho de Catequese. Ou seja, embora a separação dos
índios das colonias espanholas não tenha sido total, optou-se por
favorecer o seu relativo isolamento daquilo que se considerava como
riscos do mau exemplo dos colonos espanhóis.
Entendia-se, na época, ser necessário
conduzir os índios às pautas de uma vida política e humana como
requisito inicial para o sucesso da evangelização. Isto significava
resgatá-los da barbárie para a civilização, e da infidelidade
para o cristianismo. Tratava-se de “um projeto global, que
pretende cristianizar, humanizando”. E ainda, “a missão por
redução é um método e uma história, um modo de proceder e uma
atuação do mundo colonial”. 2
Foi o que se pretendeu no século XX com a aquisição de ideias
marxistas no trabalho social da Igreja, com resultados desastrosos,
mas, no século XVI o pensamento era legitimamente de formar uma
Sociedade Cristã entre os novos povos para, talvez, ser um bom
exemplo para uma Europa viciada e hipócrita.
Os missionários jesuítas do Paraguai
dos séculos XVII e XVIII procuraram conduzir o processo histórico
missioneiro à luz da história à da história da salvação. No
processo de ocupação, os fatos foram adquirindo um sentido
teológico, em eventos de profunda espiritualização do jesuíta e
do índio. O sentido teológico da missão encaixou-se perfeitamente
no propósito de vida guarani que era da busca da Yvy Marroy
(=terra sem males), fazendo com que o índio aceitasse mais
naturalmente a ideia da catequese e, por conseguinte, da
sedentarização.
Houve uma experiência concreta deste
“ideal de Mundo Cristão” no México desde a década de 1530, a
partir das iniciativas de Jeronimo de Mendieta. Foi assim que
experimenta-se também um modelo de Redução no povoado de Santiago
(Chile), mais conhecido pelo epíteto de El Cercado, que foi
confiado aos cuidados dos padres da Companhia de Jesus.
Cisplatinos
Na região do Rio da Prata3
as primeiras Reduções junto a nação Guarani foram assentadas pela
Ordem dos Frades Menores (os franciscanos) que criaram, em Altos
(1580), Itá (1585) e Yaguarón (1586/87) povoados
que buscavam reduzir os conflitos estabelecidos entre os índios e os
colonos espanhóis.
É nesta situação de confronto entre
índios e colonos espanhóis, que a Companhia de Jesus dá início ao
seu trabalho de “missão por redução”. De 1591 a 1606 a
documentação fala de, pelo menos, cinco grandes revoltas no médio
rio Paraná aonde seriam enviados dois missionários jesuítas em
1609. A partir da fundação da Redução de San Ignacio Guaçu
(atual Paraguai, 1609) as demais fundações estenderam-se num ritmo
um tanto irregular nas regiões do Paraná, Paraguai, Uruguai e
Tape (região oeste do atual Rio Grande do Sul) constituindo
os chamados “Trinta Povos das Missões” que reuniram milhares de
índios. Em 1743 a população dos Trinta Povos alcançava 141.182
indivíduos.
San Inácio Guaçu, fundada pelo Padre
Marcial Lourenzana (na mesma época em que foi instalada a de Nossa
Senhora de Loreto, no Guairá), foi edificada e organizada pelo Padre
Roque Gonzáles de Santa Cruz, a partir de 1611. Devido aos
frequentes ataques dos índios Guaicurus, a Redução teve que ser
mudada para um lugar mais elevado e protegido, o que comprometeu o
seu desenvolvimento.
Padre Roque Gonzalez4
era um Congregado mariano que fundou Congregações Marianas em seus
povoados. O mártir paraguaio fundou numerosas Missões e Reduções,
entre elas as aldeias de São Nicolau, Assunção e Todos os Santos
do Caaró.
Os tempos iniciais foram de
dificuldades provenientes da desconfiança e resistência dos índios,
da hostilidade dos colonos espanhóis
– os jesuítas conseguiram a dispensa do serviço pessoal dos
índios junto ao governo e os colonos foram privados da
mão-de-obra servil indígena -
da necessidade de organização dos povoados – inclusive no
âmbito de sua sobrevivência material - e de fazer frente às
"bandeiras", expedições organizadas pelos colonos da Vila
de São Paulo5
para o aprisionamento de índios a serem escravizados. Em 1635, uma
Bandeira de São Paulo, chefiada por Raposo Tavares, iniciou a
destruição, pilhagem e rastro de sangue sobre os trinta mil
indígenas catequizados e reduzidos. A devastação da região do
Guairá pelos bandeirantes, tornando escravos cerca de 20.000 índios
reduzidos, obrigou os jesuítas a transmigrarem para o sul e para o
Itatim, 500 Km ao norte de Assunção.
Vida
numa Redução
A ação dos jesuítas junto aos índios
foi missionária e civilizadora: os indígenas seriam, não apenas
convertidos, como enquadrados dentro dos marcos jurídicos e
culturais da sociedade espanhola. Se alguns dos novos valores foram
transmitidos aos índios e aceitos – como a tecnologia do ferro -
outros não foram aceitos facilmente. Os jesuítas desenvolveram uma
enérgica ação coibidora da poligamia, das festas de chicha6,
da atuação dos xamãs, da antropofagia, etc.
Os procedimentos a serem tomados quando
fosse necessário punir a algum índio estavam claramente
determinados. Em 1609, nas primeiras instruções aos missionários,
o Provincial Diego de Torres Bollo já indicava que as disputas entre
os índios e os seus “vícios públicos”, deveriam ser corrigidos
e castigados, ainda que com “amor e caridade”. Sua recomendação
recomenda que, para isto, houvesse fiscais que controlassem o
comportamento dos índios. Indica o Provincial que, embora devam agir
com firmeza contra os pecados, esta ação deveria se valer de meios
“suaves de admoestação e repreensão”.
Houve um cuidadoso trabalho e atenção
dos jesuítas às crianças indígenas. Crianças e adolescentes
tornar-se-iam cristãos devotos e eficazes agentes de evangelização
do cotidiano dos adultos. A ação dos membros das
congregações religiosas cujo estabelecimento nos povoados foi
promovido pelos padres foi bem maior. Seus membros “... fazem as
preces diariamente do Rosário, flagelam-se e usam o cilício toda a
semana, falam às mulheres de olhos baixos como os jesuítas e se
confessam com frequência. São também os espiões mais diligentes
para o pecado dos outros: repreendem o culpado e fazem um relatório
aos missionários”.7
As
Congregações nas Reduções do Paraguai
Em Congregações exclusivamente
indígenas, como a de Quito (Equador), os índios Congregados tinham
papel de oficiais de justiça, com jurisdição fundamental sobre
bebedeiras, amancebamento e feitiçaria. Daí o cuidado e a escolha
criteriosa dos indivíduos que poderiam participar das associações.
Desta forma, mais do que indivíduos cuja conduta deveria ser
exemplar e inspiradora dos demais membros da comunidade, os membros
das Congregações eram os interlocutores privilegiados dos padres em
cada Redução, canais de comunicação destes com o conjunto dos
índios dos povoados e fiscais dos comportamentos destes últimos.
As Congregações Marianas (da parte
Jesuíta) bem como as demais Confrarias e Irmandades (da parte de
outras Ordens, como a do Rosário, do dominicano Tomás de San Juan;
e a de Ánimas e a de Nossa Senhora, dos agostinianos) foram uma
manifestação comum no âmbito das práticas religiosas na América
Colonial Hispânica.
Elas foram fato essencial não apenas
no estímulo das devoções mas, ainda, como elemento organizador das
populações. Caio Boshi afirmava em 1986 que, além de promover a
comunhão entre os membros e intensificar as práticas de culto
religioso, as irmandades agiram no sentido de suprir as deficiências
materiais de seus associados, numa época que o Estado não incluía
programas sociais entre seus atos.
Nas Congregações Marianas, além de
estimularem-se ações de sociabilidade, defenderem-se direitos
profissionais e usufruir-se da solidariedade dos demais membros,
podia-se exercer devoções particulares que assumiram, em território
latino-americano, uma importância crescente pela congruência de
interesses em torno das mesmas. Os clérigos estimulavam-nas para
evangelizar;os funcionários do Estado para fundar aglomerações
estáveis que pudessem controlar; a Aristocracia via-as como uma
continuação das elites sociais; e os índios buscavam nelas uma
nova organização de sua cosmovisão, buscando restaurar a
solidariedade entre suas comunidades, a visão do “Yvy Marroy”.
Se eram, as Congregações e as
confrarias, as responsáveis pelo brilho e solenidade das procissões,
a demanda principal a qual estavam ligadas centrava-se no esforço de
elevar o fervor espiritual e fomentar as devoções – à Santa
Eucaristia, à Nossa Senhora, ou outras –, e afirmar e fortalecer a
confiança no seu patrocínio.
Na época praticamente cada cristão
pertencia a uma ou várias dessas associações piedosas. Estavam
caracterizadas por formas comuns de devoção e ajuda sobre a base da
reciprocidade. A beneficência pública esteve em geral nas mãos das
confrarias, sendo também sua a iniciativa, muitas vezes, da
construção de templos e capelas. Algumas existem até hoje, como a
Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo. Muito difundidas foram as
Confrarias do Santíssimo
Sacramento, fomentadoras da devoção eucarística e
incumbidas de levar a Eucaristia aos enfermos, acudir diante dos
gastos do sepultamento e das Missas em intenção dos mortos. O
compromisso com este conjunto de atividades é mostrado na descrição
que faz o Provincial do Peru em ânua de 1602:
"Seus
exercícios ordinários são o ocupar-se em obras de caridade com o
próximos vivos e defuntos. Aos defuntos mandarão à véspera de
Comemoração deles, mais de seiscentas Missas (...). Aos vivos
socorrem em suas necessidades: aos presos com o ter com que os
condenados tenham com que se defender nos processos e com as esmolas
que lhe trazem; e aos enfermos dos hospitais com visitas frequentes,
levando-lhes presentes e servido-lhes com notável edificação
(...). Tem seus dias nos quais se informam dos alimentos que serão
necessários para todos os enfermos e encarregando-se de mandar fazer
..."8
Seleção
e privilégios
Pertencer a certas irmandades acabou
por converter-se em símbolo de prestígio: algumas, como a de Nossa
Senhora do Ó (Lima, Peru) tinham participação
aristocrática, enquanto outras sustentavam diferenciações étnicas,
como aquelas exclusivas de índios ou negros.
Em Quito, em 1587, existiu uma
Congregação Mariana
exclusivamente para os índios do Equador.
Nas procissões solenes cada grupo
desfilava em separado, mostrando o perfil da sociedade das colônias.
As Congregações e Irmandades convertiam-se em um reflexo da
realidade social e racial luso portuguesa, às áreas e à situação
da América Espanhola na mesma época.
O estímulo à participação
diferenciada dos grupos sociais e étnicos em suas próprias
confrarias pretendeu correspondia a uma necessidade dos diferentes
grupos de cultivar suas tradições culturais próprias. Devido as
características intrínsecas da sua constituição e funcionamento,
essas instituições tornaram-se autênticas forças sociais que
detinham e controlavam uma parte importante das redes de
sociabilidade estabelecidas no tecido social das comunidades.
Comuns, portanto, no mundo da colônia, também as Reduções
do Paraguai conheceram suas próprias confrarias: as Congregações
da Virgem e de São Miguel.
“Há em todos os povos [das Missões] duas Congregações: uma
da Virgem e outra de São Miguel. Se admitem Congregados adultos de
um e outro sexo. Não se admite qualquer um. Se fazem provas
preliminares de seus hábitos. Confessam e comungam segundo a Regra
mensalmente. No dia de sua patrona se celebra com grande solenidade,
com Vésperas solenes e danças, Missa Solene e Sermão; pela tarde
se faz uma Prédica, o Padre lhes lê suas Regras e as explica:
assinam seus documentos de ingresso aos que ingressam novamente;
porque fazem juramento de viver de tal e tal forma, e de cumprir as
Regras. Este papel trazem ao colo em uma curiosa bolsa para serem
conhecidos como Escravos da Virgem, e outros como especiais devotos
de São Miguel.”9
Na de São Miguel eram admitidos
meninos e meninas a partir dos doze e até os 30 anos. Na Congregação
Mariana faziam parte índios, considerados virtuosos, de mais de
trinta anos. Em alguns povoados maiores, o número de Congregados era
grande, podendo chegar a oitocentos. Avalia-se que um décimo do
total de habitantes de cada povoado estaria adscrito a uma ou outra
Congregação.
Escolhidos por suas virtudes, os
membros das Congregações eram
agraciados com o privilégio de ocupar as primeiras filas nas igrejas
e posição de destaque nas procissões (na procissão de Corpus
Christi, os índios das Congregações precedem o Santíssimo
Sacramento, secundado pelos membros do Cabildo Diocesano*);
recebiam um funeral mais elaborado e um lugar em separado para seu
sepultamento: “o cemitério [das Reduções] é dividido em seis
partes, duas delas destinadas às crianças inocentes e aos
congregados; as outras, cuja superfície é idêntica, aos
meninos, meninas, homens e mulheres; a separação de sexos é
respeitada até na morte”. São ainda agraciados com indulgências
e com imagens devotas, agnus-dei e outras relíquias que lhes
são distribuídas regularmente.
Especialmente considerada pelos índios
Congregados era a distinção de usarem, presa a um colar, uma cópia
da carta em que o Padre Geral lhes participa as graças especiais e
uma certidão em que são declarados Escravos da Virgem. Já havia a
tradição, desde a primeira Congregação Mariana na Itália, de os
Congregados usarem uma medalha pendente de um cordão ou fita azuis
ao pescoço. A medalha era lhes conferida quando de sua Consagração
à Virgem na Congregação. O uso do cordão com a certidão parece
ser característico das Congregações Marianas do Rio da Prata.
Apostolado
e Pureza
A criação e a atuação destes corpos
de fiéis leigos nas Reduções, orientou-se – como fora delas -
pela necessidade de incentivar a benemerência, e um dos principais
deveres dos membros das Congregações nos povoados é o de
distribuir esmolas aos pobres. Os Congregados da Santíssima Virgem,
afirma o Provincial do Paraguai Francisco Lupercio de Zurbano na ânua
de 1637–1639, “dia a dia crescem em amor a sua Padroeira, e
exercem por amor a ela várias obras de Misericórdia com os enfermos
e pobres, trazendo-lhes lenha das matas, água da fonte, e comida, se
lhes sobra alguma. Aos mortos procuram suas exéquias e rezam por
eles. Atendem também aos doentes e a cada Domingo se nomeiam seis
dos Congregados por turno, os quais cada dia tem de visitar aos
enfermos, socorrendo-os com tudo que for necessário”.10
Os membros das Congregações Marianas
deviam também fomentar devoções e estimular comportamentos
piedosos e exemplares, não apenas no que se relaciona ao cumprimento
das obrigações cotidianas, mas em suas virtudes morais:
“Melhor ainda se mostra a Congregação Mariana. E tem os
Congregados uma severa vigilância entre si, não permitindo em suas
fileiras nenhum escândalo”11
Desta forma, os Congregados do sexo
masculino não apenas devem evitar a frequência a lugares em que
possam encontrar-se com mulheres (a fim de não incorrer em
pensamentos impuros), como podem propor-se a manter a castidade mesmo
após o casamento. Se o uso das tradicionais longas cabeleiras
indígenas era um sinal de infidelidade, ensina-se aos membros da
Congregação Mariana a oferecerem as suas à Virgem, para
sensibilizar aos demais a seguirem-lhe o exemplo.
Em atenção de seu zelo religioso e
virtude, os Congregados assistem a Missa e rezam o Rosário todos os
dias. Aos sábados, além disso, entoam hinos sacros em honra de
Nossa Senhora e fazem-lhe oferendas de flores; flagelam-se com
frequência, sendo estes penitentes os que demonstram mais ardor
nesta prática, confessam-se e comungam ao menos uma vez por mês.
Um zelo religioso mais exacerbado por
parte destes cristãos do que o dos demais é qualidade que
transparece dos relatos jesuíticos em várias passagens, o que
estaria de acordo com a ideia de que cabia a estes membros da
comunidade o estímulo das virtudes e crenças dos demais:
“É grande o
santo pudor das mulheres, as quais preferem sofrer qualquer martírio,
antes que manchar-se com algum pecado; pelo mesmo motivo, para
guardar a castidade, elas, por iniciatíva própria, procuram dominar
sua paixão com esforços corporais. Houve quem dois dias antes de
comungar teve um rigor tal que não bebeu nenhuma gota d'água nem
provou nenhum alimento (…) outros se penitenciaram sem compaixão
durante a Véspera, levando aos ombros pesadíssimas cruzes; estavam
quase todo o dia no templo, e confessavam minuciosamente suas menores
faltas”.12
opulência
das Devoções marianas
A opção pela Virgem como padroeira
das Congregações presentes nas Reduções, está em sintonia com o
estímulo à devoção mariana que os jesuítas fomentaram como
prática evangelizadora. Isto entre os índios, nas Reduções, como
também nos Colégios das vilas entre a população branca.
Segundo o Provincial Diego de
Altamirano, a intenção de abrilhantar os festejos poderia envolver
gastos consideráveis para a região:
“Dando como
assunto de melhores adornos a grandeza com que outras sagradas Ordens
desempenharam (…) seu afeto tocará as demonstrações operadas por
nós a cuja Igreja toda a cidade, clérigos e religiosos (…) com
majestoso triunfo levarão em solene procissão a Mãe do Verbo
Encarnado, onde, colocada em elevado trono, recebe gozosamente os
parabéns (…) Aqui por vários dias se repetiram solenes as Missas,
sermões doutos, saraus alegres, peles caras e ricos adornos, com os
quais correram enfeitados os cavalos (…) escaramuças, torneios, e
o mais que alegraram todos aqueles dias a cidade, sem que a escuridão
das noites interrompesse de todo a festa, pois a luz das luminárias,
o ruído dos fogos, com fantasias e máscaras, afastavam a natural
tristeza da noite. Racional o ornamento da igreja, justo o gasto com
a cera, caro o valor dos prêmios, adequadas as pompas segundo o
capital de cada um.”13
a
Devoção Mariana herdada se torna própria
A devoção à Virgem Maria chegou às
Américas junto com os primeiros espanhóis, que logo denominaram em
seu louvor inúmeros lugares e, depois, igrejas: Encarnación,
Rosario, Asunción, Concepción, Mercedes, etc. Cada ordem
religiosa estimulava um aspecto da devoção a Maria: os dominicanos,
o Rosário; os franciscanos, a Imaculada Conceição (o dogma da
Imaculada Conceição só foi proclamado em 1708, pela Bula
Ineffabilis Deus de Pio IX);
os mercedários, a Virgem das Mercês; os jesuítas, a Virgem
de Loreto.
À Virgem, os jesuítas dedicaram
templos, conventos e povoações e celebraram com especial fervor
todas suas as festividades; sob a sua influência fundaram-se
Congregações Marianas em múltiplas localidades do Novo Mundo.
Os índios manifestam uma “devoção
terna a Maria Santíssima que fomenta sua nova Congregação
[Mariana] na qual seus escravos juntos todos os dias escutam Missa
antes de ir para seus afazeres; e depois do trabalho profícuo de
cada dia rezam devotamente o Rosário(…)fazendo o contrário dos
vícios, de modo que cada dia prometa em sua boa disposição frutos
cada vez mais abundantes de seu fervor”. A devoção à Virgem
era garantia de proteção contra pestes como também a responsável
pela conduta exemplar de antigos pecadores.
São frequentes os relatos dirigidos no
sentido de relacionar o sucesso da evangelização com a participação
dos índios nas Congregações Marianas:
“O fruto que
se faz desta nova espiritualidade com a devoção da Virgem
Santíssima é muito grande e dá claras amostras dos Congregados
sobre a escravidão a Nossa Senhora. Frequentam cuidadosamente as
confissões e as visitas ao Santíssimo Sacramento, ouvindo Missa
todos os dias (…) e rezando o Rosário todos os dias. Assim se vê
neles os frutos desta santa devoção e vivem edificantemente.”14
No
governo da elite dos melhores
Os membros das Congregações compunham
nos povoados parte de um grupo de intermediários entre a autoridade
dos padres e os demais indígenas15.
Os antigos caciques passam a ter sua
condição hereditária e seus filhos recebem uma educação mais
esmerada. São reconhecidos pela Coroa espanhola com o título de
“don” (=senhor) e conservando parte da antiga autoridade diante
dos seus vassalos. Nas Reduções são criados os “cabildos”
indígenas - uma instituição de governo
municipal, de tradição espanhola.
Os magistrados e funcionários que
compunham este Conselho gozavam de uma situação especial: estavam
isentos do pagamento de tributos, recebiam rações suplementares de
carne e outros alimentos e vestimentas especiais. Ocupavam os
primeiros lugares no interior das igrejas e seus filhos tinham o
privilégio de frequentar a escola do povoado.
Eleito a cada ano no final de dezembro
pelo Conselho que está terminando seu mandato, o “cabildo” era
composto pelo “corregedor”, “tenente de corregedor”, dois
“alcaides comuns” (encarregados da administração, justiça e
polícia), um ou dois “alcaides de la hermandad” (mais
especificamente encarregados da polícia dos campos), o “alférez
real” (que carrega o estandarte real no dia da festa do padroeiro)
e quatro “regidores” (conselheiros municipais). Também fazem
parte do cabildo um ou dois “alguaciles” (comissários
encarregados de fazer executar as ordens), um “mayordomo”
(preposto na guarda dos armazéns e nos negócios econômicos) e um
secretário.
A escolha dos novos membros a partir
dos anteriores não se fazia, contudo, sem a aprovação do Cura (o
Padre) da aldeia. Este recebia a lista dos indicados e, em caso de
desaprovação, podia modificá-la.
Isso ocasionava fatos como, quando
paulistas indignados com a reação militar a uma Bandeira,
organizaram, em 1640, outra Bandeira, liderada por Jerônimo Pedroso
de Barros, com objetivo de libertar doze paulistas presos, encontrou,
junto às margens do arroio Mbororé, uma resistência missioneira de
4000 guaranis, 3000 armados, chefiados pelo índio general Inácio
Abiaru, sob o aconselhamento do velho cacique guarani Nicolau
Neenguiru e pelo jesuíta técnico-militar Domingos Torres.
Os indicados para o “Cabildo”
costumavam estar dentro da esfera dos caciques e seus filhos, mas os
indivíduos também podiam ascender a ele por mérito e talento
pessoal. O mérito maior era, sem dúvida, uma conduta cristã
exemplar e os membros da Congregação Mariana (a que estavam
adscritos os adultos) compunham boa parte do grupo dos escolhidos.
O comportamento dos índios cristãos
era alvo de constante avaliação e aqueles que manifestavam estar
mais dentre “os mais dignos nas coisas da fé” eram
preferencialmente os escolhidos e recomendados.
Esta era também a condição para
permanecer-se como membro das Congregações Marianas. Em
decorrência, aos Congregados eram confiadas responsabilidades
maiores, como a assistência aos enfermos ou o velório dos mortos.
Nestas situações eles poderiam, além de ser instrumento conforto
espiritual e material, zelar pela não ocorrência de "feitiçarias"
ou outras práticas pagãs.
Manutenção
da Fé
Os povoados jesuítico guaranis
chegaram a estar ocupados por alguns milhares de nativos que viviam
sob a responsabilidade de tão somente dois padres (às vezes, por
apenas um).
Conviviam neles nativos dos mais
variados graus de conversão. Mesmo os já batizados por vezes
recaíam em práticas condenáveis e as atas registram vários
exemplos destas, especialmente quanto aos comportamentos sexuais. Uma
peste, más colheitas e a fome daí decorrente, por exemplo, chegavam
a por em perigo a fé dos neófitos que podiam incorrer no pecado de
antigas feitiçarias.
Ao lado do importante papel como
fomentadores de benemerência, devoção e de modelos de vida
virtuosos, os membros das Congregações Mariana estavam a serviço
do controle e vigilância do comportamento dos demais índios dos
povoados. Seu olhar poderia chegar até onde o dos padres, em número
restrito, não chegaria. É um papel decisivo para o entendimento da
importância que alcançaram.
* * *
_____________________________________________________________
1
- DUSSEL, Enrique. Citado por "Da Virgem" e "de São
Miguel": Congregações leigas nas Reduções Jesuítico
Guaranis do Paraguai. Citado por Maria Cristina BOHN MARTINS, in
Anais Eletrônicos do V Encontro da ANPHLAC, Belo Horizonte, 2000
(ISBN 85-903587-1-2)
2-
MELIÁ, Bartomeu. As Reduções guaraníticas: uma missão no
Paraguai Colonial. Citado por Bohn Martins.
3-
O rio da Prata é o estuário criado pelos rios Paraná, Paraguai e
Uruguai, com a bacia hidrográfica combinada com seus afluentes
(rios Lujan, Matanza, Samborombón e Salado do Sul).O nome refere-se
à lendária Sierra de Plata. Em 1525 Sebastián Cabot encontrou
alguns índios que carregavam prata que obtiveram em sua expedição,
e inferiu que naquela zona havia muita prata.
4-
Roque González (1576-1628) nasceu em Assunção (Paraguai), onde
estudou e foi ordenado sacerdote. Atuou nas missões indígenas com
dedicação e, em 1609, entrou para a Companhia. Sabedor exímio da
língua guarani, após um ano de noviciado ajudava na pacificação
dos Guaicurus. Chegou ao Rio Grande do Sul em 1619. Cativando a
simpatia dos índios, não sem correr grandes riscos, fundou
diversas aldeias. Trabalhou na evangelização e instrução deles e
lutou contra sua escravidão. Morreu pela conjuração de alguns
chefes incitados por um feiticeiro, que deram-lhe na cabeça com um
machado de pedra depois de uma missa. Dois dias depois mataram o Pe.
João de Castilho com terríveis torturas. Foram canonizados pelo
papa João Paulo II em 1988 por ocasião de sua visita apostólica
ao Paraguai.
5-
território português pelo Tratado de Tordesilhas. Atual cidade de
São Paulo, SP.
6-
bebida fermentada produzida pelos indígenas andinos, datando do
Império inca. O seu preparo consiste em que garotas masquem milho e
o cuspam em um caldeirão de água fervida. Depois de fermentada, a
mistura se transforma em chicha.
7-
HAUBERT, Maxime. Índios e jesuítas no tempo das missões. Citado
por Bohn Martins.
8-
MONUMENTA PERUANA. Ed. de Enrique Fernandez SJ. Romae: Monumenta
Historica Societatis Iesu . Citado por Bohn Martins.
9-
CARDIEL, José. Breve Relación de las misiones del Paraguay. Citado
por Bohn Martins.
*-
Instituição eclesiástica que remonta a certos bispos do século
V, que reuniram em torno de si sacerdotes que viviam
comunitariamente. Desde o século XII, distinguem-se os cônegos
regulares dos seculares. Os seculares – ajudantes ou
“conselheiros” dos Bispos - são os que servem numa igreja
catedral ou numa igreja colegial. Seus membros são chamados
Cônegos.
10-
MAEDER, Ernesto (ed.) CARTAS ANUAS de la Provincia Jesuitica del
Paraguay (1632- 1634). Citado por Bohn Martins.
11-
ibid. Nota 7
12-
MAEDER, Ernesto (ed.) CARTAS ANUAS de la Provincia Jesuitica del
Paraguay (1632- 1634). DEL TECHO, Nicolás. História de la
Provincia del Paraguay de la Compañía de Jesús. Citado por Bohn
Martins.
13-
MANUSCRITOS DA COLEÇÃO DE ANGELIS II. Jesuítas e Bandeirantes no
Itatim. (1596–1760). Citado por Bohn Martins.
14-
MANUSCRITOS DA COLEÇÃO DE ANGELIS III. Jesuítas e Bandeirantes no
Tape. (1615-1641). Citado por Bohn Martins.
15-
HAUBERT, Maxime. Índios e jesuítas no tempo das missões. KERN,
Arno. Missões: uma utopia política. Citados por Bohn Martins.
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