Corpus Christi em São Gonçalo: uma recente tradição
Robson Alexandrino |
Alexandre Martins
Muito se tem escrito
sobre a tradição cristã da Festa do Corpo e Sangue do Senhor, em
especial sobre a tradição do enfeite do trajeto da procissão anexa
à mesma festa e, como católico gonçalense, não deveria eu me
isentar de comentar esta bela tradição de São Gonçalo pela ótica
católica, para benefício tanto dos católicos gonçalenses quanto
dos que queiram entender a nossa cultura.
A Eucaristia
A Igreja Católica
sempre entendeu nas palavras proferidas por Nosso Senhor Jesus
Cristo, na chamada Última Ceia, que o pão e o vinho consagrados
neste momento pelo sacerdote são em real o Seu corpo e o Seu sangue.
A Igreja vive da Eucaristia. É com alegria que ela experimenta,
de diversas maneiras, a realização incessante desta promessa: “Eu
estarei sempre convosco, até ao fim do mundo” 1
mas, na sagrada Eucaristia, pela conversão do pão e do vinho no
corpo e no sangue do Senhor, goza desta presença com uma intensidade
sem par. O Concílio Vaticano II2
justamente afirmou que o sacrifício eucarístico é “fonte e
centro de toda a vida cristã”. De fato, “na santíssima
Eucaristia, está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto
é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o pão vivo que dá aos
homens a vida mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo
Espírito Santo”. Por isso, o olhar da Igreja volta-se
continuamente para o seu Senhor, presente no sacramento do Altar,
onde descobre a plena manifestação do seu imenso amor.3
Para o cristão
católico, aquele pedaço de pão sem fermento é a real carne de
Nosso Senhor Jesus Cristo, e aquele vinho tinto o Seu precioso
sangue. Inúmeros milagres durante dois mil anos dão ao fiel a
comprovação dessa doutrina, como o Milagre de Lanciano,
exaustivamente estudado pela Ciência.
Uma festa para sanar as dúvidas
A celebração de Corpus
Christi (Corpo de Cristo) surgiu na Idade Média e consta de uma
missa, procissão e adoração ao Santíssimo Sacramento. Quarenta
dias depois do Domingo de Páscoa é a quinta-feira da Ascensão do
Senhor. Dez dias depois temos o Domingo de Pentecostes. O domingo
seguinte é o da Santíssima Trindade, e na quinta-feira é a
celebração do Corpus Christi. Porque a Eucaristia foi
celebrada pela 1ª vez na Quinta-Feira Santa, Corpus Christi
se celebra sempre numa quinta-feira após o Domingo da Santíssima
Trindade.
No final do século
XIII surgiu em Liége, atual Bélgica, um Movimento de revalorização
da Eucaristia na Abadia de Cornillon. Foi a origem de vários
costumes eucarísticos, como a Exposição e Bênção do Santíssimo
Sacramento, o uso dos sinos durante a elevação na Missa e a festa
do Corpus Christi.
Santa Juliana de Mont
Cornillon (1193-1258), à época priora da Abadia, foi a enviada de
Deus para propiciar esta Festa. Ficou órfã muito pequena e foi
educada pelas freiras Agostinianas. Quando cresceu, fez sua profissão
religiosa e mais tarde foi superiora de sua comunidade.
Desde jovem, Santa
Juliana teve uma grande veneração ao Santíssimo Sacramento. E
sempre esperava que se tivesse uma festa especial em sua honra. Este
desejo se diz ter intensificado por uma visão que teve da Igreja sob
a aparência de lua cheia com uma mancha negra, que significada a
ausência dessa solenidade. Juliana comunicou estas aparições a Dom
Roberto de Thorete, bispo de Liége, também a e Jacques Pantaleón,
arquidiácono local, futuro Papa Urbano IV. O bispo Roberto ficou
impressionado e, como nesse tempo os bispos tinham o direito de
ordenar festas para suas dioceses, invocou um sínodo em 1246 e
ordenou que a celebração fosse feita no ano seguinte.4
O Papa Urbano IV, estava
em Orvieto, cidade ao norte de Roma. Perto está Bolsena, onde em
1263 (ou 1264) aconteceu o Milagre de Bolsena: um sacerdote que
celebrava a Santa Missa teve dúvidas de que a Consagração fosse
algo real., no momento de partir a Sagrada Forma, viu sair dela
sangue do qual foi se empapando em seguida o corporal. A venerada
relíquia foi levada em procissão a Orvieto em 19 junho de 1264.
Hoje se conservam os corporais5
em Orvieto, e também se pode ver a pedra do altar em Bolsena,
manchada de sangue. O Santo Padre movido pelo prodígio, e a petição
de vários bispos, faz com que se estenda a festa do Corpus
Christi a toda a Igreja por meio da bula "Transiturus"
(de 8/9/1264) fixando-a para a quinta-feira depois da oitava de
Pentecostes e outorgando muitas indulgências a todos que asistirem
a Santa Missa e o ofício.
O ofício de Corpus
Christi foi composto por São Tomás de Aquino, que usou parte de
Antífonas, Lições e Responsórios já em uso em algumas igrejas.
Nenhum dos decretos fala
da procissão com o Santíssimo como um aspecto da celebração.
Porém estas procissões foram dotadas de indulgências pelos Papas
Martinho V e Eugênio IV, e se fizeram bastante comuns a partir do
século XIV. Na Igreja grega a festa de Corpus Christi é
conhecida nos calendários dos sírios, armênios, coptos, melquitas
e os rutínios da Galícia, Calábria e Sicília.
No Brasil, com tapetes
A confecção de tapetes
de rua é uma magnífica manifestação de arte popular que tem como
origem a comemoração do Corpus Christi. A tradição de
fazer o tapete com folhas e flores vem dos imigrantes açorianos.
Essa tradição praticamente desapareceu em Portugal continental,
onde teve origem, mas foi mantida nos Açores e nos lugares onde
chegaram seus imigrantes, como Florianópolis (SC).
A festa foi trazida para
o Brasil pelos portugueses. Numa carta de 9 de agosto de 1549, o
Padre Manuel da Nóbrega, da Bahia, informava: “Outra procissão
se fez dia de Corpus Christi, mui solene, em que jogou toda a
artilharia, que estava na cerca, as ruas muito enramadas, houve
danças e invenções à maneira de Portugal”.6
As procissões
portuguesas eram esplendorosas: tropas, fidalgos, cavaleiros,
andores, danças e cantos. A imagem de São Jorge, padroeiro de
Portugal, seguia a procissão montada em um cavalo, rodeada de
oficiais de gala.
A Liturgia Romana
Para as procissões
eucarísticas, a cruz vai à frente ladeada por duas velas. Não se
leva incenso junto à cruz. Atrás dela os ministros dois a dois, os
acólitos, os diáconos e os concelebrantes. Estes últimos portam o
pluvial, mas podem portar também a casula se a procissão foi feita
logo após a missa. O celebrante principal, se não levar a sagrada
eucaristia vai imediatamente à frente dela. Segue, então, a sagrada
Eucaristia carrega por um clérigo vestido com alva, estola, pluvial
e véu umeral de cor branca. É coberta pelo pálio ou pela umbela,
carregado por quatro ou seis pessoas. À sua frente, vão dois
acólitos com turíbulos fumegando. Se for o bispo a levar o
Santíssimo, o báculo vai à frente dos turiferários e a mitra, bem
como o livro atrás do pálio. Além dos demais acólitos
assistentes, vão na parte de trás da procissão, os clérigos em
vestes corais. Os de maior dignidade vão mais perto da Sagrada
Eucaristia. Durante a Missa o celebrante consagra duas hóstias: uma
é consumida e a outra apresentada aos fiéis para adoração.
A procissão lembra a
caminhada do povo de Deus, peregrino, em busca da Terra Prometida. No
Antigo Testamento esse povo foi alimentado com o pão maná, no
deserto. Hoje, ele é alimentado com o próprio Corpo de Cristo em
forma de pão.
Em São Gonçalo
A festa passou a
integrar o calendário religioso brasileiro em 1961, quando uma
pequena procissão saiu da igreja de Santo Antônio e seguiu até a
igreja de Nossa Senhora de Fátima em Brasília. A festa de Corpus
Christi no município de São Gonçalo começou em 19957.
Em 2010, os tapetes de
Corpus Christi em São Gonçalo são patrimônio cultural
imaterial do município, conforme a Lei Estadual 3141/10 de autoria
do Deputado Altineu Cortes.8
Sua extensão de 2000 metros o caracteriza como o maior em extensão
da América Latina.
A
cada ano, o Prefeito de São Gonçalo assina um decreto nomeando os
componentes da Comissão dos Festejos de Corpus Christi no
município, publicado no Diário Oficial da cidade.
Uma tradição católica e cultural gonçalenses
A
cidade de São Gonçalo foi fundada por portugueses e grande parte de
sua arquitetura é de origem ibérica. Não somente as casas, mas o
modo de ser das pessoas, do comércio, são típicos de antiguidade
portuguesa. A religião católica é um dado característico dessa
cultura e tornou-se também uma característica brasileira,
desenvolvendo-se em formas próprias em uma chamada “brasilidade
católica”.
A
festa católica do Corpo de Cristo é assimilada em toda a
Cristandade e não poderia deixar de ser em São Gonçalo também
praticada. Com orgulho temos o maior tapete artístico de sal com
motivos sacros de toda a América Latina. Isso demonstra não só a
catolicidade de nossa cultura antiga, mas também a preservação de
uma tradição para as gerações futuras, ansiosas de tradição e
cultura seculares.
(publicado originalmente no blog da Sociedade de Artes e Letras de São Gonçalo)
_________________________________________________________________
1-
Evangelho segundo são Mateus, capítulo 28, versículo 20
2-
reunião de todos os bispos da Igreja Católica, realizado de 1963
a 1966, em Roma, Itália.
3-
Carta Encíclica “Ecclesia de Eucaristia” (A Igreja da
Eucaristia) do papa Paulo II, §1
4-
O decreto está preservado em Binterim (Denkwürdigkeiten, V.I.
276), junto com algumas partes do ofício.
5-
guardanapos de pano branco onde se apóiam o cálice e a patena
durante a Missa.
6-
Cartas do Brasil, 86, Rio de Janeiro, 1931.
7-
sítio oficial da Arquidiocese de Niterói, disponível em
http://arqnit.org.br
8-
PROJETO DE LEI Nº 3141/2010 - DECLARA PATRIMÔNIO CULTURAL
IMATERIAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO OS FESTEJOS RELIGIOSOS DE
Corpus Christi E O TAPETE PARA A PROCISSÃO NO MUNICÍPIO DE
SÃO GONÇALO/RJ Autor(es): Deputado ALTINEU CORTES - A ASSEMBLÉIA
LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO RESOLVE: Art. 1º -
Ficam declarados como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do
Rio de Janeiro os festejos religiosos de Corpus Christi e o
tapete preparado para a procissão católica no município de São
Gonçalo. Art. 2º - Esta Lei entra em vigor na data de sua criação.
Plenário Barbosa Lima Sobrinho, 9 de junho de 2010.