O Dever de Estado
Alexandre Martins, cm.
Fazer o que
se deve fazer, em qualquer trabalho ou responsabilidade assumida, e
realizando da melhor forma que nos é possível tem o nome de “dever
de estado”.
Ser bom
profissional, agindo com honestidade e competência; cuidar com amor
dos filhos, ensinando-os a serem bons cristãos e pessoas íntegras;
ter zelo pelos estudos, sendo fiel aos compromissos e não agindo com
deslealdade. Tudo isso foi o ideal perseguido pelos cristãos de
várias épocas.
Embora há
várias citações no Antigo Testamento sobre detalhes da vida
cotidiana e ditames para cada tipo de pessoa, podemos afirmar que o
primeiro locutor que se dirigiu diretamente aos reais interessados
foi s. João Batista. Os livros sapienciais e mesmo o Pentateuco
davam as orientações de modo genérico. O Batista foi o primeiro a
dar normas diretasi
a quem lhe perguntava como proceder com retidão em seu próprio
estado de vida.
Os primeiros
“mestres” no assunto foram os anacoretas, os Padres do Deserto e
seus discípulos, os primeiros seguidores do monarquismo cristão. Em
vários escritos e também no relato de suas vidas, fatos por seus
discípulos ou por seus admiradores, há indicações sobre como agir
corretamente na vida cotidiana comum. Alguns chegam a detalhar com
precisão certas atitudes do dia a dia de qualquer pessoa. E, com
isso, tornaram-se referência ate mesmo para não-cristãos. Essas
“escolas do dever de estado” ficaram restritas aos mosteiros e
seus admiradores. Por muitas décadas somente os monges falavam sobre
o assunto. Mesmo as pregações dos missionários e o resto do Clero
ouviram dos escritos monásticos.
Contudo,
após a Idade Média, no início da Idade Moderna, surgiram
associações que iniciaram um tratamento do assunto do dever de
estado de uma forma mais incisiva e como parte de sua própria ação
apostólica. Eram as Congregações Marianas para estudantes.
Não se
tratava mais de apenas sugestões, genéricas ou não, para cada tipo
de pessoa em seu próprio estado de vida. Cada Congregação Mariana
se preocupava com a vida pessoal de cada membro. A exigência de uma
vida profissional coerente com a vida cristã era mais do que uma
recomendação: era autêntico apostolado.
O
pensamento do pe. Francis Coster, SJ, e que se tronou particamente um
lema nas várias Congregações Marianas por ele fundada era que
“todo aquele que vive no meio dos
homens e quer trabalhar pelo bem das almas deve unir o cuidado com o
espiritual a uma vida perfeitamente correta. Se lhe fata uma dessas
duas – sábio sem virtude, piedoso sem cultura – nada fará para
o bem do próximo. Será muito útil a vós mesmos e à sociedade
cristã a busca dessas vantagens e, com a ajuda da Virgem Mãe,
progredir na virtude e nos estudos.”ii
Os melhores alunos dos Colégios eram os
Congregados Marianos. Se os melhores alunos desejavam o ingresso na
Congregação como que para “coroar” sua vida acadêmica, outros
alunos entendiam a associação como um estímulo para que fossem
excelentes alunos sem serem relacionados com sua Fé.
O sucesso
desse modo de pensar a vida humana levou outras classes de
profissionais a fundarem suas próprias Congregações Marianas, como
os advogados, professores, artesãos e até peixeiros! Todos queriam
viver o cristianismo em seu próprio estado de vida. Sem clericalismo
e sem laicismo.
“Precisamente
a partir do Concílio de Trento o laicato se posicionou e progrediu
na atividade apostólica. É fácil de comprovar; basta recordar seus
feitos, dentre muitos: as Congregações Marianas de Homens,
exercitando ativamente o apostolado leigo em todos os domínios da
vida publica e a progressiva introdução da mulher no apostolado
moderno.”1
Com a
supressão da Companhia de Jesus, esse pensamento foi praticamente
abandonado e, em alguns lugares, outros grupos continuaram a falar do
assunto mas sem tanto entusiasmo quanto antes. Por mais incrível que
possa parecer, foram os antigos Congregados e seus filhos que criaram
e continuaram com esses grupos e confrarias de leigos, perpetuando de
certo modo aquela clássica forma. ”Uma
particularidade das Congregações Marianas é criar, inaugurar,
manter as obras e depois deixá-las atuar por si mesmas; ou passar as
outras mãos que queiram encarregar-se destas.”iii
Com o
retorno das casas da Companhias de Jesus, vários Congregações
Marianas foram reabertas e outras fundadas. Mas esse pensamento não
era mais o elemento motor como antes pois o Clero secular havia
transformado as Congregações Marianas que sobreviveram em simples
confrarias de piedade. Não adiantava aos novos jesuítas enfrentar a
situação pastoral da época e as coisas foram deixadas como estavam
por algum tempo.
Em 1910 com
a promulgação das Regras Comuns, a Companhia de Jesus retomou suas
atividades entre os leigos pelas Congregações Marianas. Buscando as
raízes nas primeiras regras, retomaram o pensamento do dever de
estado, sendo agora adaptado ao novo e esperançoso século XX. As
Encíclicas papais haviam sinalizado que a sociedade havia mudado e
que, em decorrência, os desejos e necessidades das pessoas também.
Tornava-se essencial para o Clero suprir essas novas necessidades e
a Companhia de Jesus, como sempre tomando a iniciativa, fez dos
Congregados marianos os pioneiros dessa vontade dos Papas.
Embora as
Congregações Marianas do século XX não fossem tão seletivas
quanto as do século XVll, o pensamento de agir cristãmente na
sociedade era o teor principal das palestras e até da admissão ou
exclusão de Congregados. Isso significava que em uma mesma
Congregação Mariana poderia haver pessoas de classes diferentes,
mas a todas seriam exigidas critérios rigorosos de boa conduta,
tanto na vida em sociedade quanto em sua vida profissional.
“O
famoso missionário Matteo Ricciiv
quando estabelecia uma missão a organizava como uma Congregação
Mariana e escolhia com muito cuidado o presidente entre os chefes de
família mais dignos. Ele próprio os instruía profundamente e logo
podia confiar neles -os sozinhos enquanto fazia suas 'correrias' de
apostolo”.v
Com o
surgimento do Opus Dei em 1928, seu fundador, s. Josemaria Escrivá,
usou da forma de ação das Congregações Marianas da Espanhavi
para organizar o modo como iria propagar o carisma aos seus
seguidores. Este é mais um exemplo de como as Congregações
Marianas foram influenciadoras da vida da Igreja. Historiadores
afirmam que esse pensamento de “ação laica no mundo
contemporâneo” feito e executado com sucesso pelas Congregações
Marianas no século XX foi a matriz dos desejos dos padres sinodais
no Sagrado Concílio Vaticano II. Muitos documentos afirmam a ação
exercida pelas Congregações Marianas nos séculos anteriores e os
recomendam para toda a Igreja. Uma prerrogativa excelente para as
Congregações Marianas.
No século
XXI, tecnocrata e ateísta, o pensamento do “dever de estado”
torna-se mais necessário e urgente do que nunca. Somente com a ação
consciente e coerente dos Congregados marianos em cada ambiente em
que estejam pode ser a força de mudança de nossa sociedade, do
Brasil e do mundo em uma verdadeira Cristandade que será a
realização dos desejos de Nosso Senhor Jesus Cristo para todos os
homens.
Santa Mãe
de Deus, nos ilumine o caminho.
***
ii-
VILLARET, Emile, SJ in “Cuatro Siglos de Apostolado Seglar –
Historia de las CCMM”, adaptação do pe. Fernando Robles, SJ
1-
ibid.
iii-
ibid.
iv-
Padre Matteo Ricci, SJ. (Macerata, 6/10/1552 — Pequim, 11/5/1610)
foi um sacerdote jesuíta, missionário, cientista, geógrafo e
cartógrafo renascentista italiano. É conhecido pela sua atividade
missionária na China da dinastia Ming.. Ele é o fundador das
modernas missões católicas na China, contribuindo assim de modo
decisivo para a introdução do catolicismo na China.
v-VILLARET, Emile, SJ in “Cuatro Siglos de Apostolado Seglar –
Historia de las CCMM”, adaptação do pe. Fernando Robles, SJ
vi-
“La Congregación de la Inmaculada”. Por Federico Udina y
Martorell (Director del Archivo de la Corona de Aragón, desde 1961
hasta 1982).