Alexandre Martins, cm.
A história das Congregações Marianas ligadas ao meio militar é uma daquelas narrativas que percorrem séculos como um fio discreto, mas resistente, entrelaçando devoção, disciplina e identidade castrense. Embora pouco explorado pela historiografia clássica, esse fenômeno revela como a espiritualidade mariana estruturada pela Companhia de Jesus encontrou terreno fértil entre soldados e oficiais que buscavam, em meio ao caos das batalhas europeias, uma forma de vida interior ordenada e coerente com suas responsabilidades militares.
Desde os primórdios da Companhia, jesuítas acompanharam tropas em campanhas que varriam o continente: do reinado de Henrique II à era de Luís XVI, passando por Flandres, Polônia e Boêmia. A presença constante desses padres ao lado de soldados em marcha, guarnições sitiadas e campos de batalha levou naturalmente à ideia de formar grupos de jovens combatentes segundo o modelo já testado nas escolas e universidades da Ordem. Não se tratava apenas de “rezar antes da batalha”, mas de oferecer ao soldado um modo de vida espiritual que reforçasse o dever, a lealdade, o autocontrole e a coragem.
Uma das experiências mais marcantes ocorreu na cidade universitária de Louvain, em 1592. Em meio a distúrbios e ao risco iminente de invasão, a população fugia, mas os jesuítas permaneceram para ajudar na defesa civil. Sob sua orientação, jovens de dezoito anos em diante — rapazes que já tinham idade para empunhar armas — foram reunidos numa Congregação Militar do Santíssimo Sacramento. O grupo professou publicamente a fé católica e, por juramento, comprometeu-se a defendê-la até o fim. Curiosamente, os estatutos determinavam que, durante procissões com o Santíssimo Sacramento, seus membros deveriam acompanhá-lo armados, como uma guarda devocional. A iniciativa chamou a atenção de Roma: o papa Clemente VIII concedeu indulgências àqueles jovens que, entre barricadas e trincheiras improvisadas, respondiam ao toque de alarme com exemplar prontidão. Crônicas da época mencionam que poucas vezes se vira, na defesa de uma cidade sitiada, disciplina tão firme e tão corajosa.
Depois disso, a ideia de formar militares segundo um modelo mariano reapareceu inúmeras vezes, ainda que sob formas variadas. No século XVIII, muitos oficiais europeus haviam passado pelas Congregações dos colégios jesuíticos antes de ingressar em academias militares. Mesmo com a expulsão da Companhia de Jesus em vários países, a marca espiritual permaneceu: hábitos de exame diário, devoções marianas estruturadas, disciplina interior e senso de camaradagem ética foram absorvidos por contingentes militares em França, Portugal, Áustria e nos reinos italianos. É impossível rastrear quantos oficiais do período mantinham práticas herdadas de sua formação mariana, mas a literatura contemporânea sobre espiritualidade militar reconhece esse legado silencioso como parte da cultura profissional das armas na Europa moderna.
No entanto, é no início do século XIX que surge um dos empreendimentos mais ambiciosos desse tipo. Em 1821, em Paris — ainda marcada pela herança da Revolução e do Império —, o jesuíta Padre Roger e o Capitão Bertaud du Coin* estabeleceram a Congregação Militar de Nossa Senhora das Vitórias. A proposta era simples, mas ousada para sua época: reunir oficiais que desejassem reviver, em tempos de secularização agressiva, os valores morais que antigos cavaleiros associavam ao serviço simultâneo a Deus e ao Rei. A associação, rapidamente popular entre a Guarda Real, atraiu nomes de alta patente: coronéis, tenentes-coronéis, oficiais do Estado-Maior, nobres e veteranos. O espírito da Congregação era de profunda devoção, mas também de responsabilidade moral e pública — seus membros desejavam mostrar, por meio da própria conduta, que era possível unir profissionalismo militar, fidelidade ao Estado e vivência cristã madura.
Justamente por isso, porém, não demorou para que setores anticlericais e liberais começassem a ver na Congregação uma ameaça. Suspeitas de “conspirações clericais” — tão comuns na retórica política da época — espalharam-se rapidamente. Rumores chegaram ao Delfim, que declarou que não aceitaria oficiais abertamente identificados como congregados. A pressão política tornou-se insustentável, e os oficiais, percebendo o risco de conflito institucional, decidiram suspender voluntariamente as atividades. O episódio tornou-se emblemático da tensão entre a laicização progressiva das nações europeias e a persistência de identidades religiosas no interior das forças armadas.
Apesar de terem desaparecido como organização formal, as Congregações Marianas militares deixaram um rastro duradouro. Ao longo do século XX e até hoje, a presença mariana entre militares subsiste em formas diversas: capelanias castrenses, patronas marianas de unidades e armas, associações nacionais de militares católicos e movimentos internacionais como o Apostolat Militaire International. No Brasil, na França, na Espanha, na Polônia e em outros países, Maria ainda é vista por muitos militares como símbolo de proteção, coragem e fidelidade — uma herança indireta, mas viva, daqueles antigos congregados que marcharam sob a bênção dos jesuítas.
Assim, a história das Congregações Marianas de soldados não é apenas um capítulo curioso de devoções passadas. É a narrativa de como, em tempos de guerra e incerteza, comunidades de fé moldaram caráteres, fortaleceram espíritos e deixaram marcas profundas na cultura militar. Embora as estruturas organizacionais tenham mudado, a influência que elas exerceram continua a ecoar discretamente — como uma antiga oração que, mesmo não sendo mais pronunciada em voz alta, ainda ressoa no interior de quem veste a farda.
* - O Capitão Claude Bertaud du Coin (ou, por vezes, simplesmente Bertaud du Coin) foi um oficial militar francês do século XIX. Ele é conhecido principalmente por capitão de Infantaria da Guarda Real francesa. Tema de um elogio fúnebre proferido pelo Conde O'Mahony em 1828.
fonte: pe. Augusto Drive, SJ, in revista Estrela do Mar, dezembro de 1939, págs. 345-346

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