A História Pouco Conhecida dos “Oficiais de Fé” das Grandes Navegações

Alexandre Martins, cm.
Durante séculos, a narrativa da história naval esteve predominantemente centrada em batalhas, conquistadores e ilustres almirantes, personagens que, sem dúvida, moldaram os mares do mundo. Contudo, um capítulo frequentemente negligenciado é aquele que destaca o papel dos congregados marianos — homens formados nos colégios dos jesuítas, que trouxeram consigo ao mar não apenas ciência e técnica, mas também uma espiritualidade profunda e um ideal de serviço. Essa história revela não só a importância dessas figuras no contexto marítimo, mas também lança luz sobre como sua formação espiritual e acadêmica influenciou as grandes navegações durante os séculos XVII a XIX.
Os Congregados: Estudantes, Profissionais e… Futuros Marinheiros
As Congregações Marianas, fundadas em 1563, emergiram como grupos de jovens que buscavam um aprimoramento integral — tanto na fé quanto na vida prática. Aqueles que participavam dessas congregações eram frequentemente estudantes de estabelecimentos jesuítas, onde recebiam uma formação sólida em diversas disciplinas, incluindo matemática, astronomia, línguas, geografia e disciplina pessoal. Essa formação, que parecia inicialmente voltada para o desenvolvimento moral e intelectual, acabaria por se revelar crucial para aqueles que escolheram as carreiras marítimas.
Nos séculos XVII e XVIII, a navegação constituía uma verdadeira arte de precisão, na qual o conhecimento acadêmico adquirido se tornava inestimável. Os congregados marianos, com suas habilidades multidisciplinares, estavam excepcionalmente bem preparados para enfrentar os desafios do mar, transformando-se em profissionais altamente competentes e respeitados. Assim, a relação entre a vida acadêmica nos colégios jesuítas e a carreira marítima se tornava cada vez mais clara e evidente.
Por Que Tantos Marítimos Vieram Desses Grupos?
A explicação para a alta incidência de ex-congregados marianos nas profissões marítimas é bastante simples: os colégios dos jesuítas estavam estrategicamente localizados nos principais portos da Europa e do Mediterrâneo, como Lisboa, Porto, Sevilha, Cádiz, Marselha, Messina, Beirute, Alexandria e Goa. Em cada um desses locais, o fluxo de navios e marinheiros era constante. Onde há porto, há navio; onde há navio, há marinheiro; e onde havia marinheiro, muitas vezes havia um ex-congregado mariano.
Esses homens se tornaram pilotos, navegadores, engenheiros navais, cartógrafos, médicos de bordo, oficiais e cadetes, desempenhando papéis fundamentais nas expedições marítimas da época. Muitos dos especialistas da navegação ibérica que se destacaram nas águas centrais e periféricas do mundo foram formados nesse ambiente singular, marcado pela interação entre fé e conhecimento.
A Vida a Bordo e a Fé de Quem Navega
A espiritualidade mariana tinha um papel central na vida dos navegadores. Maria, frequentemente referida como Stella Maris, ou Estrela do Mar, era vista como a guia dos navegadores, oferecendo proteção e segurança nas tempestades e nas incertezas do mar. É fácil imaginar marinheiros com medalhas marianas penduradas em seus peitos, altos improvisados em barcos e promessas feitas em momentos de pavor.
Nas embarcações, as práticas espirituais eram comuns: bênçãos antes da saída de portos, orações em situações críticas e até mesmo a realização do Exame Diário - uma prática de reflexão introduzida pelos jesuítas - que muitos comandantes realizavam à noite nas suas cabines como forma de rever o dia. Essas pequenas ações revelam a profundidade da espiritualidade marinha e como a fé estava intrinsecamente ligada à vida e à identidade dos homens que desbravavam os oceanos.
Portugal, Espanha e França: Três Centros Marítimos “Marianos”
Em Portugal, especialmente nas cidades de Lisboa e Porto, as Congregações Marianas encontraram solo fértil. Esses centros jesuítas tinham uma influência considerável, formando muitos pilotos da Carreira das Índias, que cruzaram os oceanos Atlântico e Índico, levando consigo mapas, ciência, e uma profunda devoção à fé. Entre esses marinheiros, muitos eram congregados marianos, cuja formação espiritual e técnica lhes conferia uma vantagem significativa nas difíceis jornadas marítimas.
Na Espanha, Cádiz se destacou como a capital das Armadas das Índias, abrigando uma das sodalidades mais ativas. Os guarda-marinhas, que partiam em direção ao Caribe e ao Pacífico, frequentemente eram oriundos dessa formação espiritual mariana. Tal formação não apenas fornecia uma base sólida em ciências náuticas, mas também oferecia um senso de propósito e compromisso que era fundamental para as exigências da vida no mar.
França também possuía importantes centros de formação mariana, como Marselha e Toulon, onde oficiais eram treinados com uma forte ênfase na disciplina militar e na espiritualidade. O espírito mariano francês unia a fé, a honra e a disciplina, criando uma cultura naval rica e diversificada. Essa formação ajudou a moldar líderes navais que eram não apenas competentes em sua arte, mas também exemplares em sua conduta ética e moral.
O Choque do Século XVIII: Expulsão dos Jesuítas
Entre 1759 e 1773, muitos países europeus expulsaram os jesuítas, resultando em um grande impacto nas instituições educativas aos quais estavam vinculados. Os colégios foram fechados, mas a espiritualidade cultivada ao longo dos anos não desapareceu.
Surpreendentemente, embora as instituições físicas tenham sido extintas, os oficiais, pilotos, almirantes e engenheiros que passaram pela formação jesuíta continuaram a levar consigo os valores e práticas espirituais adquiridos durante a juventude. Esse legado mariano e inaciano persistiu, moldando a cultura marítima, mesmo sem a presença direta dos jesuítas.
O Século XIX e o Renascimento
O século XIX trouxe um renascimento das Congregações Marianas, com novos grupos surgindo nos portos do mundo. No Brasil Imperial, cadetes da Escola Naval, engenheiros hidrográficos e médicos navais tiveram formação em Congregações Marianas ligadas aos jesuítas no Rio de Janeiro e na Bahia. Isso demonstra que a influência dos congregados marianos não ficou restrita à Europa, estendendo-se através do Atlântico e contribuindo para a formação de profissionais estrangeiros que se destacaram em marinhas europeias, otomanas e mercantes.
Nos portos do Mediterrâneo Oriental, grupos maronitas, melquitas e latinos também formaram pilotos que serviram a diversas marinhas, perpetuando a tradição de integrar fé e vocação marítima dentro do exercício profissional. Essa interconexão traz à tona a importância da formação espiritual na vida marítima e como ela se manifestou em contextos diversos ao redor do mundo.
Por Que Essa História Quase Desapareceu?
A história dos congregados marianos no mar foi praticamente esquecida devido a algumas razões. Primeiramente, os registros militares da época frequentemente negligenciavam a vida espiritual e as influências religiosas dos oficiais, focando apenas em suas realizações profissionais e conquistas bélicas. Além disso, muitos congregados consideravam a formação espiritual como uma experiência íntima e quase natural, que não necessitava de registro ou reconhecimento formal.
No entanto, ao juntarmos arquivos jesuítas, crônicas navais, relatórios de expedições, listas de pilotos e memórias pessoais, surge uma surpreendente revelação: um número significativo de homens do mar foram moldados por essa rede mariana que, mesmo silenciada por muito tempo, teve um impacto profundo e duradouro na história naval.
Os “Congregados do Mar”
Os congregados marianos não foram ordens religiosas ou monges navegantes, mas homens comuns, alimentados por uma mistura rara de ciência, fé, disciplina, vocação marítima, e espírito de aventura. Essa combinação única permitiu que contribuições significativas fossem feitas à história naval, que se estendeu do Atlântico ao Mediterrâneo e até o Oriente.
A história dos congregados marianos no mar é, em última análise, um testemunho de como a formação de um jovem em um grupo espiritual pode moldar a coragem e a determinação necessárias para enfrentar tempestades, conflitos e oceanos desconhecidos. Essa narrativa oferece uma visão ampla e enriquecedora de uma parte da história que, apesar de frequentemente esquecida, continua a ecoar na vida e nas conquistas dos que navegam sob as estrelas do mar.
IA
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